Todos os fãs sabem o quanto o universo de zumbis de George Romero inspirou os jogos da série, mas poucos sabem o quanto Resident Evil foi influenciado pelo estilo do mestre do suspense Alfred Hitchcock, aclamado diretor responsável por clássicos do cinema. Este artigo visa expor algumas destas referências nos títulos da franquia, mostrando que Resident Evil sempre foi muito mais do que apenas “um jogo de zumbis e vírus mortais”. O trecho a seguir foi retirado de uma entrevista realizada em 2001 com Shinji Mikami, o criador de Resident Evil, publicada no livro japonês “Another Side of Biohazard”.
“(…) eu queria colocar um título curto como “Psicose”. Mas que combinasse com a história, então decidimos chamar o jogo de “Biohazard”.”
“Eles fugiram para a mansão, onde acharam ser seguro. Até que…” – Resident Evil (1996)
Nem sempre fazer uso de imagens horrendas, sangue jorrando e gritos de agonia funcionam na hora da criação de uma atmosfera cujo objetivo primário é causar medo. O terror e o suspense na franquia Resident Evil tiveram como um de seus principais elementos-base as ambientações hostis, no fato de se ver preso, encurralado em um lugar desconhecido, em uma situação inimaginável, com a ocorrência de fatos que desafiam a realidade e o cotidiano até mesmo das pessoas mais crédulas.
A esplendorosa mansão Spencer é muito mais do que uma fachada para os laboratórios secretos da Corporação Umbrella. Mais do que suas armadilhas mortais e seus obstáculos em forma de enigmas, a imensa propriedade labiríntica é cheia de cômodos cheios de belíssimas obras de arte e estátuas, reflexo da excentricidade de um milionário que pode ostentar tal estilo de vida. Mas se você, como bom fã, já reparou nos mínimos detalhes deste local magnífico, com certeza vai se lembrar dos elegantes papéis de parede cheios de alto-relevo, das cabeças de alce na parede, dos candelabros, da fina tapeçaria e da mobília rústica, característica de quase todos os cômodos da residência.
O estilo de decoração da mansão data do fim da década de 60, quando ela foi finalmente concluída pelo renomado arquiteto nova-iorquino George Trevor, no ano de 1967. O filme Psicose foi lançado em 1960, e tanto a casa da família quanto o Motel Bates trazem este mesmo estilo de decoração. O escritório de Norman tem estes elementos tão típicos, como os diversos quadros espalhados pelas paredes do cômodo e animais empalhados nas paredes, também encontrados em diversos locais da mansão. Até mesmo o estilo de filmagem de Hitchcock parece ter inspirado Mikami e toda a equipe por trás do projeto que, posteriormente, acabou recebendo o nome BIOHAZARD.
Com suas câmeras fixas e seus cenários pré-renderizados, os ângulos entregam a forte influência de Hitchcock. Grande parte das tomadas do filme mostra câmeras fixas, como que “colocadas” em um local da cena para que o personagem Norman Bates possa interagir com estes elementos do cenário sem que nenhum detalhe se perca. Na cena do escritório, em que o dono do motel conversa com a atraente Marion Crane, recém-hospedada em um de seus quartos, é fácil reparar nestes detalhes.
A câmera fixa corta de Norman para Marion o tempo todo, assim como nos diálogos nos jogos de Resident Evil. Este tipo de câmera aparece também em outro filme de Hitchcock, o incrível “Janela Indiscreta”, onde um homem com a perna quebrada, passa seus dias espiando a vida dos vizinhos de seu apartamento. É como se estivéssemos na posição do observador, enquanto assistimos a todo o desenrolar dos acontecimentos dos jogos, com suas câmeras fixas.
É impossível não reparar na semelhança externa entre o Bates Motel e a Guardhouse. Uma construção de madeira, com uma atmosfera bem mais rústica do que a da propriedade. A casa da família Bates também traz semelhanças com a mansão, como a sua escadaria coberta por uma imensa tapeçaria, bem diante da porta da entrada. Outra residência mostrada na série é praticamente uma réplica da parte externa da casa dos Bates. A propriedade particular da Família Ashford, no alto de uma colina, mostrada em Resident Evil CODE: Veronica, também traz o estilo de decoração típico dos filmes de Hitchcock.
“Todos nós enlouquecemos, às vezes.” – Norman Bates, Psicose (1960) de Hitchcock
Não foi apenas na atmosfera e na ambientação que os filmes do diretor americano influenciaram a série Resident Evil. Até mesmo a composição de alguns personagens traz elementos das complexas personalidades de suas tramas. O psicótico Norman Bates influenciou pelo menos dois personagens icônicos na franquia: Brian Irons e Alfred Ashford.
O chefe de polícia Brian Irons é um homem obcecado por obras de arte e com um sinistro hobby, a taxidermia. Bates tinha o mesmo hobby e o descreve para Marion, na cena do escritório. Brian e Norman dividem uma segunda característica fundamental: a forma como ficam obcecados pelas mulheres “impossíveis”. Um documento encontrado em Resident Evil 2, um fax enviado para Chris Redfield por um investigador do FBI, descrevem contravenções cometidas por Irons em seus tempos de colégio. Oculta sob a imagem de um homem público integro, ele esconde uma personalidade violenta, capaz de cometer atrocidades, como violência doméstica e abuso sexual.
Norman se sente fortemente atraído por Marion, mas se utiliza do artifício da existência de uma mãe doente e controladora como a falsa razão pela qual nada pode acontecer entre os dois, quando, na verdade, nada jamais aconteceria por parte da moça. Em Resident Evil 2, Irons sabe que jamais poderá ter um romance com a filha do prefeito da cidade. Decide, então, matá-la e empalhá-la como uma espécie de troféu, assim ele a teria para sempre, “congelada na posição em que ele a colocasse”.
Alfred Ashford, cujo primeiro nome poderia até ser uma homenagem ao genial Hitchcock, também parece ter sido inspirado em Norman Bates e sua dupla personalidade. Norman foi o responsável pela morte de sua mãe anos atrás e, desde então, como uma forma de sanar a sua solidão e preencher o vazio em sua vida, age como a mãe, imitando sua voz e até conversando com ela. Alfred faz o mesmo em CODE: Veronica. Depois que sua irmã gêmea Alexia resolve ser submetida a um sono criogênico por quinze anos, até que o vírus T-Veronica entre em simbiose com o seu organismo, ele passa a se vestir como a irmã, agir como ela e até forjar diálogos com a irmã.
O problema, tanto no caso de Norman quanto no de Alfred, é que o hábito acaba se tornando uma doença, e estas personalidades começam a conflitar dentro de sua cabeça. Eles realmente passam a acreditar que são aquelas pessoas que imitam, e as culpam pelas atrocidades que cometem. Alfred, assim como Norman, é um homem extremamente sádico e cruel, e se utiliza de sua segunda personalidade para realizá-las. Ambos se travestem como as mulheres que um dia dominaram suas vidas e a quem veneravam de uma forma abusiva. Alfred possuía uma espécie de amor pela irmã em uma relação quase incestuosa, enquanto Norman mantinha um forte complexo de Édipo pela mãe, matando a ela e ao homem com quem vivia depois da morte de seu pai e de quem o rapaz tinha ciúmes.
Nem Norman e nem Alfred cresceram: ambos pararam no tempo. O quarto do rapaz na casa da família é cheia de brinquedos, assim como a propriedade particular de Alfred e Alexia é repleta de bonecas. Um ambiente infantil e, ao mesmo tempo, perturbador.
Este sadismo se apresenta também em outros personagens da série e em acontecimentos que os envolvem. É o caso do fundador da Umbrella, Ozwell E. Spencer, e o cruel uso de Lisa Trevor, filha do arquiteto responsável pela construção de sua bela mansão, como cobaia por muitos anos. Albert Wesker utilizou os S.T.A.R.S. em sua busca por dados de batalha das armas biológicas soltas pela mansão, e mais tarde espancou Claire Redfield como forma de punir seu arqui-inimigo Chris, irmão da jovem. O estranho Ramon Salazar e a sua natureza infantil, contrastando com horrendas feições envelhecidas de seu rosto. James Marcus e a obsessão por utilizar cobaias humanas em seus experimentos com o T-Virus, sem se importar na quantidade de vidas que precisarão ser sacrificadas em nome de suas pesquisas.
“(…) Em RE, eu não coloquei muita essência de “surpresa”, eu aprendi isto com o filme “Psicose”, você não precisa fazer o jogo inteiro ter cenas chocantes, apenas incluir algumas cenas simbólicas que entrem na mente do jogador para ampliar o medo.” – Shinji Mikami
Resident Evil está cheio de momentos que se tornaram marcas registradas de sua atmosfera original de suspense. São cenas breves e sutis, mas que causam grande tensão em seus jogadores. Um cão adentrando um corredor da silenciosa mansão, uma criatura passando do lado de fora de uma delegacia tomada por mortos vivos e demais criaturas resultantes de um vazamento viral…
E seria apenas uma coincidência que algumas das cenas mais icônicas da franquia estejam ligadas a janelas? Ou seriam uma possível referência ao famoso “Janela Indiscreta”, mencionado anteriormente? Corvos e zumbis invadem a delegacia através das diversas janelas de seus cômodos, até o terrível Nemesis T-Type arrebenta uma em sua caça incessante por Jill Valentine. Uma simples moldura com vidro separa o lado “protegido” do lado cheio de perigos, que ninguém jamais atravessaria, pois se sabe exatamente o que os aguarda “lá fora”. Tão segura, porém tão vulnerável que pode trazer o perigo para dentro com o simples trincar do vidro.
Saindo das referências sutis ao trabalho de Hitchcock e seguindo para uma mais óbvia, os corvos assassinos que vemos na maioria dos jogos da franquia foram inspirados diretamente pelo thriller “Os Pássaros”. Tanto as aves do clássico filme quanto os corvos de Resident Evil mostram que o perigo pode estar onde menos se espera. Até mesmo na forma de pássaros aparentemente inofensivos, criaturas que podem causar um imenso estrago, especialmente por estarem sempre em bandos.
Em “Os Pássaros” toda uma cidade se torna refém destas criaturas de aspecto fraco, mas de natureza assassina, espreitando sobre telhados, esperando o momento certo para o ataque mortal às suas vítimas. No primeiro jogo, o policial Forest Speyer morre a bicadas por uma horda de corvos infectados com o T-Virus. Cena semelhante se vê no filme, quando encontram o corpo de um homem após um ataque de pássaros fora de controle. Até mesmo Norman Bates tem obsessão por pássaros. Ele os considera criaturas passivas e incapazes de ferir alguém, e ainda os compara à sua obsessiva mãe, que, apesar de doente, ele alega que jamais faria mal a outra pessoa. Mas, faz.
“Sempre faça o público sofrer o máximo que puder.” – Alfred Hitchcock
Resident Evil mostrou, portanto, desde seu primeiro suspiro de vida, o quanto as obras-primas de Alfred Hitchcock teriam presença forte em tudo o que viria a seguir. O close no olho arregalado de Chris Redfield, cheio de medo, na abertura do primeiro jogo da série, acabou se tornando uma marca registrada nas telas de início dos jogos da franquia. Estes olhos, presentes em diversos momentos de suas tramas cheias de reviravoltas, são as janelas – indiscretas? – que revelam os sentimentos humanos mais íntimos e primitivos, o sadismo inerente do ser, o perigo escondido sob as aparências mais frágeis.