Depois de mais de 23 horas de jogo e exatas 138 mortes, eu cheguei ao final de The Evil Within. Sim, demorei mais do que deveria para terminar, mas quis saborear cada minuto deste jogo, a mais nova criação de Shinji Mikami, o pai da franquia Resident Evil, da qual sou uma grande fã e… Bom, não vamos nos alongar neste quesito.
Há tempos que o gênero Survival Horror vinha restrito somente às desenvolvedoras indie e cada vez mais se afastava das grandes publishers, como Capcom e Konami. No entanto, como toda tendência retorna um dia, o mesmo mercado que buscava por jogos mais dinâmicos e com ação mais desenfreada passou a pedir pela volta do gênero que, apesar de existir desde o início da década de 1980, foi trazido à tona e popularizado com o lançamento do primeiro Resident Evil (ou Biohazard, no Japão), em 1996.
Shinji Mikami não é apenas um experiente produtor e diretor de jogos, mas é também um artista de muita competência. Para a criação de sua primeira franquia de Survival Horror, que seria baseada em um antigo RPG da Capcom “Sweet Home”, Mikami estudou a psicologia do terror a fundo, de modo a criar uma experiência que fosse totalmente aterrorizante, porém ainda plausível dentro de um mundo real, ao misturar o grotesco com ciência e dar novamente aos zumbis o papel de criaturas mortais, que, outrora horrendos, haviam, então, ganhado uma imagem mais cômica, graças a filmes (sensacionais, diga-se de passagem) de humor negro, como A Volta dos Mortos Vivos.
Com a saída do diretor da Capcom e as constantes mudanças de mercado, Resident Evil se afastava cada vez mais de seu gênero de raiz e seguia mais para o lado da ação. O próprio Mikami, neste meio tempo, trabalhou em outros projetos menos focados em terror, mas, aparentemente, não se esqueceu da franquia que consolidou e inspirou tantos outros títulos ao mercado na década de 90, como Silent Hill, Parasite Eve (“não é um vírus, é evolução” era o seu slogan, na época), Nightmare Creatures e até o retorno de Alone In The Dark, com o seu quarto título, “The New Nightmare”.
O MAL INTERIOR
The Evil Within foi anunciado em 2012, em uma parceria do estúdio Tango Gameworks com a distribuidora Bethesda e com o título provisório de “Project Zwei” (Zwei significa “dois” em alemão), e ganhou o seu primeiro trailer live-action um ano depois, com a música clássica “Air on the G string” de Sebastian Bach como trilha sonora, que, inclusive, faz parte das primeiras cenas do jogo.
Com o título de Psycho Break no Japão, o jogo traz um conceito de Survival Horror focado no terror psicológico, porém com a pegada do biológico que a gente conhece tão bem de Resident Evil. Aí você “Mas como eles criaram um terror psicológico e concreto ao mesmo tempo? Isto é possível?”. E a resposta é que, SIM, é possível, quando o genial Mikami decide trabalhar o conceito de experimentos com a mente humana.
O protagonista é Sebastian Castellanos, detetive da delegacia da fictícia Krimson City, e um homem que esconde um grande trauma devido a uma tragédia em sua vida. Após receber um chamado para investigação de uma cena de crime no sanatório Beacon Mental Hospital, junto com seus parceiros Joseph Oda e Juli Kidman, ele acaba se envolvendo nos sádicos planos de vingança do misterioso e brilhante Ruvik.
Outros personagens marcantes também merecem destaque ao longo do jogo, como o jovem perturbado Leslie Withers, paciente do hospital psiquiátrico, e sua bizarra ligação com Ruvik. O médico Marcelo Jimenez, encontrado por Sebastian e por Joseph logo no início da trama, também tem uma participação importante nos acontecimentos atuais e nos que levaram aos planos de Ruvik. Uma outra paixão de Mikami parece ser a de inserir famílias aristocráticas e suas tragédias pessoais às tramas de seus jogos, criando, assim, uma mistura de gerações, trazendo à tona a necessidade da tentativa de manter costumes e aparências acima de tudo.
Em diversos momentos, o jogo te transporta de um cenário a outro do nada, como uma tentativa de impedir Sebastian de chegar à verdade e, ao mesmo tempo, de fazê-lo sofrer até conseguir entender onde ele acabou se metendo. A trama é bastante densa, explicada a conta-gotas e de uma forma que, muitas vezes, abre espaço para diversas interpretações e especulações.
Mikami nos coloca em ambientes cheios não somente do tradicional “gore”, que é o excesso de sangue e de nojeiras, como órgãos expostos, restos mortais e pessoas mutiladas pelos cenários, mas, mais uma vez, ele tem liberdade criativa para explorar o sadismo e a ilimitada maldade humana, anteriormente apontados na trama de Resident Evil, com o uso de pessoas inocentes como cobaias para experimentos e atividades ilegais para a satisfação de mentes egocêntricas e gananciosas. O detetive Castellanos acaba tendo que encarar fantasmas de seu passado, despertados propositalmente por Ruvik, para chegar ao fim do mistério que o cerca.
CONCEPÇÃO DE CRIATURAS
The Evil Within traz um novo tipo de monstros primários, os Haunted, que são uma espécie de zumbis ou de humanos possuídos. Quaisquer mortos pelos cenários podem, de repente, ganhar vida e passar a persegui-lo. O que os difere dos zumbis, no entanto, é que, semelhantemente aos ganados de Resident Evil 4, eles podem atacar com armas, fazer uso de alavancas e até chamar atenção de outros para atacá-lo em bando. Assim como mortos vivos, porém, eles também morrem com tiros certeiros que destruam suas cabeças, caso contrário, a saída é explodi-los ou queimá-los com os fósforos encontrados ao longo dos cenários.
Outras criaturas mostram o tamanho da perversidade do antagonista Ruvik, já que todas são criações de seu próprio mundo. A grotesca Laura, uma mulher de cabelos negros bem longos e com vários braços, de grande importância também para o plano de fundo da história, vem rastejando na sua direção por vários momentos do jogo, e um único golpe dela é o suficiente para matá-lo de forma instantânea. Laura, pode-se dizer, é uma verdadeira mistura de tudo o que causa medo em jogos de Survival Horror e em terror oriental. Seus gritos, quando atacada pelo fogo, seu ponto fraco, são de arrepiar a espinha de qualquer um.
De criaturas marinhas a aranhas gigantes, de sádicos com motosserras a guardiões com martelos gigantes. Estes últimos, aliás, merecem um destaque especial. Os Keepers são criaturas com uma cabeça em forma de caixa e aventais de açougueiros, que vêm em forma consecutiva e distorcem a imagem da tela durante as suas aparições. Algumas vezes, é possível vê-los arrastando cadáveres com suas cabeças pregadas no martelo, uma imagem bizarra o bastante para imaginar o que vem em seguida, quando é necessário enfrentá-los.
Já deu para perceber toda a bizarrice presente nos monstros do jogo? Porque, só avisando, não para por aí, e cada um traz um design que faz até os mais corajosos temerem um bocado por suas vidas. Ah, e se prepare para várias mortes instantâneas e inevitáveis, por pior que isto possa parecer, porque todos eles possuem golpes de “one-hit kill”.
Mikami é conhecido pela criação de inimigos grotescos. Basta lembrar das imensas criaturas presentes em Resident Evil. É bem legal mencionar, inclusive, que diversas delas guardam uma grande semelhança com monstros como o chefe final de Resident Evil 2 e especialmente com muitos que aparecem em seu último jogo da franquia da Capcom, Resident Evil 4.
JOGABILIDADE
E por mais repetitivo que possa soar falar de Resident Evil 4 também é inevitável não citá-lo, principalmente pelo fato de serem “filhos do mesmo pai”. O último Resident Evil de Shinji Mikami trouxe a novidade da visão com a câmera sobre o ombro do personagem, e acabou influenciando tantos outros jogos de sua geração, sendo Gears of War o mais notável deles. The Evil Within segue os passos desta tendência e funciona como uma evolução dela, utilizando a perspectiva “over-the-shoulder” a seu favor para aumentar a tensão do jogo.
“Opa! Espera aí! Mas não foi justamente Resident Evil 4 que acabou levando a franquia da Capcom para a ação?”. Vamos com calma! A mecânica do quarto título de Resident Evil, na verdade, contribui e muito para aumentar o fator surpresa de qualquer jogo, pelo fato de ocultar o que está nas suas costas, ao seu lado e, principalmente como foi utilizada em The Evil Within, tampar uma boa parte da visão da tela, o que dificulta e muito ver o que vem pela frente. Cada abertura lenta de portas – já que nem todas podem abertas no chute – é um novo suspense, e te leva a imaginar se o que está por vir é um cenário livre de inimigos ou tomado por armadilhas.
As armadilhas, aliás, são fator presente no jogo. É preciso estar atento para não passar correndo e acabar explodindo em uma delas, ou tendo o seu pé preso em uma daquelas de caçar ursos. O lado bom é que você pode desarmá-las, o que acaba lhe rendendo peças que podem ser usadas para a construção de arpões, os Agony Bolts, com inúmeras funções.
O inventário é em tempo real, mas com uma novidade: o tempo passa mais devagar na tela de gerenciamento de seus recursos, mas, de qualquer forma, evite acessá-la durante confrontos com inimigos, pois qualquer golpe deles o transportará para o jogo e sua velocidade normal. A cura de Sebastian é feita através do uso de seringas, que recuperam certa quantidade de energia, ou de raríssimos kits médicos, que recuperam 100% da energia, mas devem ser utilizados em um momento mais “calmo”, já que a visão de Sebastian fica turva e seus movimentos ficam cambaleantes por alguns segundos.
Os mais saudosistas irão se derreter ao se depararem pela primeira vez com a evolução das “salas de salvamento” (ou “save rooms”) dos Resident Evils mais antigos. Ao atravessar alguns espelhos específicos ao longo do jogo, Sebastian vai para uma versão paralela do Beacon Mental Hospital, onde pode, entre outras coisas, salvar seus progressos no balcão de recepção e aprimorar suas habilidades em uma cadeira especial. Mas não se preocupe de ficar meio perdido a princípio, ao chegar neste local misterioso. A enfermeira Tatiana estará lá para ajudá-lo e mostrar o que há de novo, conforme você progride no jogo.
Para realizar estas melhorias em Sebastian, é preciso coletar um gel verde, ora espalhado pelo cenário em vidros, ora deixado por inimigos eliminados definitivamente. O arsenal do jogo não é dos maiores, mas todas as armas também podem ser melhoradas, o que é muito útil conforme você vai evoluindo, e precisa de mais poder de fogo e mais espaço para carregar mais munição de cada uma delas.
E sair na porrada com os inimigos, dá? Até dá, e você também pode melhorar a condição física (que não é das melhores, diga-se de passagem) de Sebastian. Mas, acredite, golpear os inimigos com os punhos não é das tarefas mais fáceis, até porque eles não apanham quietos. O que facilita o seu lado é encontrar algumas armas brancas pelos cenários, como machadinhas e garrafas, que podem ser usadas para golpear ou para jogá-las e distrair os inimigos, enquanto você tenta passar sem chamar atenção.
Uma coisa que ajuda muito a poupar munição são as “sneak kills”, nas quais você se aproxima lentamente do inimigo pelas costas e os esfaqueia na cabeça. Para quem jogou The Last Of Us, por exemplo, este recurso é bem familiar e pode ser bastante explorado, especialmente contra alguns inimigos que dão um pouco mais de trabalho, como os “doppelgängers” de Ruvik, encontrados a partir do capítulo 11.
MAS, AFINAL, “THE EVIL WITHIN” É SURVIVAL HORROR OU NÃO?
Esta é a pergunta que não quer calar, certo? Acabamos de falar sobre melhorias em armas, inimigos que atiram e atacam em grupos, visão sob o ombro etc. O jogo faz jus ao gênero do Survival Horror mesmo, ou é só propaganda para atrair os apaixonados por jogos de terror? E esta questão só pode ser respondida se pararmos para analisar friamente os elementos mais comuns do gênero.
Sangue, violência visual, carnificina. Isto tem de sobra no jogo. Existem literalmente lagos de sangue pelo jogo, sem falar em um momento específico em que Sebastian é levado por uma onda vermelha. O sadismo é um tema central de The Evil Within, e as diversas mortes que você pode sofrer com Sebastian são bastante desagradáveis de se ver.
Também já mencionamos o fato do protagonista ser um homem com marcas do passado, que o levaram à dependência alcoólica e de cigarro, e lhe causaram até limitações físicas. É importante salientar que Sebastian realmente tem movimentos lentos no início do jogo, graças ao seu péssimo condicionamento físico atual, adquirido por conta de seus vícios. Apesar de ser possível encontrar algumas vezes os seus parceiros Joseph e Juli, a maior parte do jogo se passa com Sebastian sozinho, sofrendo todos os tipos de torturas da mente doentia do antagonista.
Recursos escassos também são um elemento importante no Survival Horror, correto? É claro que este é um aspecto que difere na forma como cada pessoa conduz o jogo. Na minha experiência pessoal, por exemplo, em pouquíssimos momentos, jogando na dificuldade SURVIVAL (o equivalente ao NORMAL), eu fiquei sem munição. Isto talvez aconteça pelo fato de eu ter me habituado a poupar munição nos jogos, graças ao meu passado com Resident Evil e outros Survival Horrors, o que me fez acostumar a sempre ter recursos extras. No entanto, se o desafio do nível SURVIVAL for pouco para você, tente arriscar o NIGHTMARE ou, pior ainda, o AKUMU, e então podemos voltar a falar sobre a escassez de itens.
Sustos, suspense e clima sombrio também não faltam em The Evil Within, desde o seu início até o final do jogo. Os sons dos Haunted podem ser bastante perturbadores, os ambientes são opressores e a trilha sonora, ou a sua ausência, contribuem para criar a atmosfera perfeita, pelo menos na maioria das cenas. O nono capítulo, The Cruelest Intentions, merece um destaque especial, por explorar mais a vida e o passado de Ruvik, e por termos de lidar com os seus fantasmas pessoais. As cenas com a bizarra Laura também são interessantes e podem render alguns bons sustos, além de eventuais pesadelos na hora de dormir.
A POSSIBILIDADE DE UMA CONTINUAÇÃO
O jogo tem as suas falhas, especialmente por se tratar de um jogo cross-gen, lançado para consoles da geração passada (PS3 e Xbox 360) e da atual (PS4 e Xbox One), portanto, é natural que o gráfico não esteja tão rebuscado e caracteristicamente dignos de um título dirigido por Shinji Mikami, mas, em uma análise geral, estão decentes e um segundo título pode corrigir os erros de seu antecessor.
O ritmo em The Evil Within varia bastante, de momentos mais silenciosos e sombrios, a outros com mais ação e tensão, o que pode confundir a cabeça e incomodar alguns jogadores mais puristas em relação ao gênero Survival Horror.
Apesar de Shinji Mikami ter declarado há um tempo que não faria mais franquias com continuações, o final do jogo abre, sim, as portas para uma sequência. Mesmo sem a possível presença de Mikami na direção, as possibilidades abertas pelo tema escolhido para o título são amplas e contribuem para a liberdade de criação de um The Evil Within 2 e até para o Survival Horror como um todo. Este, agora, necessitará ser reinventado constantemente para não voltar a cair no ostracismo de outrora.
Quem é fã de jogos de Survival Horror, e especialmente para quem curte Resident Evil até o quarto título, deve dar uma chance a The Evil Within. Shinji Mikami deixa clara a sua marca no jogo, com o exagero de gore e bizarrices, os cenários detalhados, uma trama envolvente (apesar de confusa, a princípio), inimigos desafiadores e um final intrigante. É imprescindível reforçar que se trata de um cross-gen, e que o ideal é sentir a experiência na geração atual. Mas, independentemente do console, vale a pena curtir este que pode ser um reinício do gênero de terror nas grandes publishers.